sexta-feira, maio 05, 2006

As Aves

(Texto publicado em 1995, no meu livro "Treze Infernos - Textos Poéticos, Contos e Crônicas".)


(Origem: Li, em 1995, notícia sobre fotógrafo americano que ganhara o prêmio Pullitzer com foto de criança africana agonizando e corvo esperando nas proximidades. Meses depois, o fotógrafo é encontrado morto dentro do carro em sua garagem fechada e motor ligado. Suicídio?... Aí eu escrevi...).

A imagem ainda está, cruel, terrível ante meus olhos: o menino africano agoniza; numa pedra, o corvo espera. A imagem está gravada, indelével em meu coração. A cena dói em mim e doerá por muitos anos, infinitamente, nos olhos de cada menino, no andar cansado de cada velho, no rosto sofrido de cada um, essa cena doerá em mim, pungente, impiedosa. Daí minha impotência, minhas mãos vazias, meu ódio incontido por todas as injustiças, por toda sorte de corrupção, de impunidade, de oportunismo, de sarcasmo, de hipocrisia.

Magérrimo, sem forças, o menino fica deitado na sua dor infantil. A fome já não lhe dói, na dormência da morte que vai, inexorável, invadindo seu corpo pequeno. No torpor da agonia ele já não se recorda do prazer da comida ou talvez, no delírio, sonhe: um prato de arroz, doces, balas, um chocolate. A ave negra espera, apenas.

Conheço essas aves, há muitas em minha cidade. Voam atrás do poder fácil, do dinheiro fácil, do emprego fácil, do abuso fácil, Quando não podem ser, bajulam ou imitam quem é. Quando não podem ter, orbitam em torno de quem tem, as aves. Daí a minha revolta, os meus textos amargos, o meu poema agressivo. Daí o meu desinteresse nas glórias mesquinhas, nas quinquilharias, nas posses e poses, nas falsas pompas, nos elogios gratuitos.

Escrevo porque melhor não sei fazer. Mesmo que ninguém leia ou creia, eu escreverei insistindo: eu percebo gente à venda infestando a cidade como percevejos... A dor dói, sim, em mim, estupenda e avassaladora. Por isso eu quero as coisas simples e pequenas apenas. E comida e educação, e saúde e proteção, e carinho e respeito para aquele e todos os outros meninos, menino que eu fui, meus filhos...

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