sexta-feira, maio 05, 2006

A meu pai

(Texto publicado em 1995, no meu livro "Treze Infernos - Textos Poéticos, Contos e Crônicas".)

Na manhã de quarta-feira, 22 de fevereiro de 1995, faleceu meu pai. Idoso, cansado, calado, partiu sem quase nada me dizer. A dimensão da sua ausência foi-se avolumando, lenta e cruel, tomando forma e submetendo-me a uma solidão estranha, cheia de pontos obscuros e pausas não esclarecidas. Foi-se o nordestino piadista, incansável contador de casos e conhecedor de coisas que livro algum jamais me ensinará. Sentei-me num canto e olhei para minhas mãos inúteis.

O dia estava claro quando ele partiu. Até a notícia demorou a chegar, tamanho o silêncio com que ele se cercara nos últimos tempos, ciente da urgência da partida e disposto a botar os pés feridos na sua última estrada. Não reclamou. Não acusou ninguém e, por si mesmo, não derramou, nunca, uma lágrima sequer

Partiu como quem pede desculpas pelo mau jeito, pela piada infeliz, pelo estorvo causado e por não ter podido dar mais do que deu aos que amou. Levou consigo as mãos calejadas em cobrir as crias, em dar-lhes morada e sustento. Aos pequenos, aos menores, reservou, em seu peito, um cantinho especial. Amou-os, assim, com seu jeito terno. E fomos , todos nós, os menores, um dia, e tivemos, portanto, um lugar especial naquele velho coração.

Deixou-nos coisas valiosas, imateriais, sagradas, como essa certeza diante da vida, uma posição sólida ante as injustiças, um silêncio sereno ante a dificuldade. Riqueza não deixou porque não as teve mas transmitiu aos que o conheceram uma doçura prática para superar qualquer obstáculo: sua alegria determinada.
Uma orfã perspectiva abre-se para mim nesse desamparo, um mundo novo onde me sinto estranhamente só, um horizonte onde impera esse nó no peito, esses caminhos todos em que terei que caminhar, carregando as lembranças, pois os seus ossos não poderei levar.

Foi-se meu pai ao encontro de minha mãe e ficamos nós, pasmos diante da crueza do destino, meninos ainda, dentro de nossas grandes cuecas, a lamber nossas próprias crias como se fôssemos eternos.

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